terça-feira, 21 de setembro de 2010

Um punhado generoso de tal especiaria

Um punhado generoso de tal especiaria
Por Alexandre Nicoletti Hedlund

Igor acordou cedo pela manhã e dirigiu-se para a cozinha com passos pesados, fruto de uma vida sedentária. Abriu a geladeira por costume, pois seus olhos ainda estavam cerrados e teimosos em abrir. Sentou-se a mesa e levou um susto ao ouvir o rádio-relógio ligar, tocando uma sinfonia qualquer de Wagner.

Agora, de olhos parcialmente abertos, viu a chuva começar a cair molhando a rua por completo. Em pé, em frente à janela, sorriu ao ver algumas jovens fugindo dos fortes pingos da chuva. Acompanhou as jovens com o olhar até perdê-las de vista ao dobrarem o quarteirão.
Voltou-se para a mesa e terminou seu café sem ao menos sentar-se.
Desligou o rádio e foi novamente ao seu quarto, pois precisava se vestir.
Igor se sentou na cama enquanto colocava os sapatos que estavam sujos. Irônico que apenas se lembrasse de limpá-los quando precisava deles.

Olhou-se no espelho, mas não havia muito que mudar em sua aparência cansada. Desceu as escadas e antes de sair acenou com a cabeça, em sinal de muito respeito, para o retrato de sua mãe, que estava disposto acima da lareira.

Já na rua, Igor caminhava entre os passantes, demonstrando certa dificuldade em conduzir seu guarda-chuva. Não lhe era difícil bater-se ou enroscar-se com os demais, num desastroso balé que era observado pelos cidadãos respeitosos que se exprimiam debaixo das marquises.

Igor silenciosamente praguejava contra toda a situação, mas era segunda-feira e ele tinha certa urgência em chegar à feira municipal. Dobrou a rua da Concórdia e teve de se ater ao cartaz em preto e branco na frente do Cine Lumière: Nostalghia de Tarkovsky.

Naquele momento tudo parou na vida de Igor e ele foi levado diretamente para 15 anos antes, quando foi assistir a tal filme com sua amada Katerina.

Absorto em suas memórias, Igor não notou passarem batendo-lhe no braço, gesto que fez seu guarda-chuva cair. Agora a chuva lhe molhava o rosto, mas Igor apenas via o sorriso de Katerina e o gosto de sua boca ao sorrir para ele. Teve a impressão de, novamente, tocar seus longos cabelos castanhos, perdendo sua mão entre tal mar cacheado de ondas.
O tempo passava, as pessoas passavam, mas Igor permanecia ali em frente ao Cine, sonhando com sua amada. De repente foi lançado para outra cena, viu-se saindo do Cine com Katerina que sempre lhe sorria, demonstrando tal afeto e entrega, compartilhando com ele comentários sobre a maravilha do filme.

Oh, Katerina! O coração de Igor estava em tuas mãos.

Foram até o café do outro lado da rua e discutiram tantas ideias, sonhos, projetos.
Igor, ainda parado na rua, via tudo acontecer novamente, e, por mais estranho que possa parecer, teve a leve impressão de sua imagem, no interior do café, ter lhe acenado, indicando uma grande alegria em vê-lo.

As lágrimas de Igor se confundiam com as da chuva e ele foi trazido de volta a fria realidade. Nunca mais entrara no café, embora a todos conhecesse como irmãos. Não lhe era mais convidativo desde que Katerina se fora pelos motivos que a fizeram ir.

Limpou o rosto e novamente com o guarda-chuva, apressou seus passos amargurados, para bem longe dali. O resultado foi um coração acelerado e um respirar ofegante que o conduziram por duas quadras até chegar à feira.

Andou por todos os lados, pegando aqui e acolá algumas coisas que pareciam próprias para se ter. Um pouco de tempero, algumas frutas da época e mais alguns vegetais. Alguém chamou sua atenção, mas ele não reconhecendo a voz, preferiu nem olhar. Continuou andando e a cada passo sua bolsa parecia mais pesada, mais cheia de coisas.
Estava quase no final dos estandes e seus braços não agüentavam mais carregar a bolsa, quando se deparou em frente a um senhor com grandes sobrancelhas e um bigode pintados de preto que abrindo os braços e lhe sorrindo disse:

- Eu lhe esperava, meu caro amigo!
- Esperava a mim? – perguntou Igor.
- Sim, a você, e apenas a você. – respondeu o velho.
- Mas o que tem para me oferecer, visto que não tem mais nada em cima de sua mesa ou pendurado ao longo de seu estande?
O velho riu uma gargalhada tão verdadeira de aquecer o coração.
- Igor, meu doce Igor! Já não está pesada tua bolsa?
- Sim, sim. Minha bolsa está pesada, mais do que o normal, de tal modo que quase não consigo conduzi-la apenas com uma mão. Mas como sabe meu nome?
- Igor, meu doce Igor! Eu já lhe esperava, lembra? – sorriu fraternalmente o velho.
- E então, o que tem para mim? – perguntou Igor em um tom desconfiado.

Igor tentava lembrar do rosto daquele senhor, e mil perguntas lhe passavam pela cabeça. Como aquele senhor que ele nunca vira antes, podia saber quem era e o que poderia ele lhe oferecer.

- Igor, que tal rever as coisas que adquiriu ao longo do caminho? Será que precisa de tudo o que trazes contigo?

- Mas hoje peguei menos coisas do geralmente venho pegar! Nada mais do que alguns temperos e frutas. Como poderia isso se tornar tão pesado – exclamou.

O velho soltou uma nova gargalhada e então olhando nos olhos de Igor disse:

- Igor, meu doce Igor! Não falo das frutas ou vegetais. Tão bem vê que não tenho nada disposto em meu balcão que possa lhe oferecer, mas mesmo assim eu o esperava. Agora te perguntas o que poderia eu lhe oferecer. Pois te ofereço a dúvida.
- Como assim a dúvida? Não estou entendendo nada do que falas.
- Pergunto-lhe outra vez. Será que tudo que carregas contigo é necessário? Não está na hora de abrir tua sacola e ver o que pesa e que faz teu caminhar ser tão dificultoso?
- Não seria custoso fazê-lo, mas ainda não entendo a razão de tudo isso.
- Igor, meu caro Igor! Tua sacola não tem espaço para o item mais importante que poderia carregar contigo. Uma especiaria que dará outro tom a toda tua vida.
- Que especiaria é essa? – perguntou Igor, agora curioso.
- Essa especiaria se chama Felicidade. – sorriu largamente o velho.
- Felicidade? Estas louco? Onde está essa felicidade que não vejo em teu balcão? – perguntou Igor em tom de deboche.
- Não Igor, antes fosse louco. A felicidade não está no balcão, pois não é ai que deva procurar. A felicidade está ao longo da caminho, em cada passo que dá, na direção que for. Mas você, meu caro Igor, tem abarrotado sua sacola com outras coisas, não deixando espaço para a felicidade. Por isso suas manhãs são cinzas, seus dias silenciosos e seus anos tão frios.

- Por isso, e apenas por isso, eu estava lhe esperando.

Igor fechou o guarda-chuva e deixou cair a sacola de suas mãos. As laranjas se espalharam pelo chão, mas ali, naquele momento, nada mais importava.

Igor agradeceu ao velho e foi ao cinema, chegando ainda em tempo de ver o final do filme. Na escuridão cortada pelas cenas tão bem delineadas, Igor chorou silenciosamente, encantando por tamanha beleza.

Na saída, dirigiu-se ao café onde fez questão de tomar um saboroso cappuccino. Na saída, pagou a conta, cumprimentou os presentes, lamentou os ausentes e prometeu a si mesmo jamais permitir novamente que não houvesse espaço para carregar consigo um punhado generoso de tal especiaria.

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