segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Réquiem para Joaquim - Capítulo IX

Este é o 9 e penúltimo capítulo desse conto que me acompanhou ao longo do ano, fazendo de Joaquim um amigo, assim como Colombo. Espero que gostem. 



IX – Não quero um abajur enfeitado.
 Por Alexandre Nicoletti Hedlund

Maracaíbo. Uma brisa batia e acalmava meu corpo deitado ao lado de Mercedes. Dois corpos suados numa tarde qualquer perdida no tempo. Não demoraria muito a escurecer quando levantamos com o barulho da rua. Eram senhoras com cestos de roupa na cabeça que cantavam antigas músicas do sofrimento da escravidão e da liberdade. Nua, Mercedes contava da janela o que acontecia do lado de fora. Uma prévia do paraíso se desenhava em suas costas banhadas por tons alaranjados do pôr do sol.
- Acorde Guido! Acorde! Estamos chegando ao Rio. – Joaquim já de pé, alcançava nossas bagagens de mão.
Levantei meio sonolento e saímos, embora eu não tenha lhe dado muita atenção, preocupado mais por não ter conseguido mudar as coisas para Joaquim. Sequer poderia imaginar que ele já preparava outra aventura.
- Preciso ir a um lugar antes de seguirmos viagem.
- Você está maluco, irmãozinho? Precisamos seguir “adelante”.
- Fique tranquilo, apenas me siga. Preciso fazer uma coisa antes de irmos embora do Rio e você fará comigo.

Nem imaginei contrariar Joaquim, pois ele estava mesmo decidido a ir a algum lugar. Tomei a iniciativa de pegarmos um táxi enquanto ele procurava um jornal do dia. No caminho eu tentava me localizar e cheguei a discutir com o taxista, pois achei que ele estivesse nos enganando. Joaquim apenas riu da situação, pedindo calma de minha parte, mas sua atenção se voltou para outra coisa que demorei um pouco a entender. Era um menino no trânsito. Não que eu fosse insensível, mas depois de ver tantos meninos pobres pedindo dinheiro nos cruzamentos da vida eu já não me deixava atingir por isso. Talvez isso acontecesse com a maioria das pessoas que passavam por ali naquele instante, pois ninguém parava para lhe comprar um doce ou lhe ajudar. “Confortável omissão” pensei comigo, pois se os outros não fazem nada, também nos sentimos confortáveis em nada fazer. Nesse instante Joaquim mandou o táxi parar e quis sair pelo meio do movimento de carros. Tentei impedi-lo, pois me pareceu uma maluquice sem sentido, mas ele conseguiu se desvencilhar e foi por entre os carros, sem encontrar o menino.

Desconsolado resolveu caminhar um pouco e concordei, pois a viagem de Paris havia me deixado com dores nos joelhos. Coisas da idade.
- Você sabe quem foi Barata Ribeiro, Guido?
- não sei não irmãozinho.
- pois eu vou te contar. – Joaquim estava alegre por poder me ensinar algo. Eu deixei que continuasse.

Passado isso, logo estávamos na praia. Joaquim logo foi absorvido por seus pensamentos e eu apenas o respeitei. Tive de ajudá-lo a acordar para atravessarmos a av. Atlântica. Quando chegamos à praia ele quis se sentar por uns instantes. Pensei em aproveitar aquele vento gostoso e a sombra para cochilar, mas algo me impediu. Hipnotizado pelo mar e pela beleza de um azul magnífico de tantas tonalidades condensadas em um mesmo céu vi Joaquim chorar. Na verdade foram algumas poucas lágrimas que relutaram em cair, mas por final, vencidas, seguiram por seu rosto. Aquilo me fez ter esperança de que as coisas haviam mudado em Paris. Deixei-o sentado e fui molhar meus pés naquela imensidão de mar. Lembrei de um poema de Galeano, sobre o pai que leva o filho para ver o mar pela primeira vez, mas Joaquim estava tão concentrado que não pareceu correto lhe atrapalhar.

O sol estava se pondo quando achei por bem que voltássemos para o aeroporto. Quando chegamos à casa de Joaquim, liguei para Mercedes para avisá-la de que já estávamos bem e que em alguns dias estaria em casa. Mercê pediu que eu retornasse pois Lúcio havia chego em casa. Isso poderia estar mudando o rumo das coisas, mas eu resolvi ir ver meu filho, pois a saudade era muito grande. Prometi a Joaquim que voltaria em breve sem dar muitas explicações de minha viagem.

Ele não gostou muito de minha viagem, mas compreendeu. Creio que Colombo também, pois veio sentar-se ao meu lado antes de eu partir. Por um motivo que não pude entender Joaquim me entregou uma cópia das chaves de sua casa e fez questão de que eu soubesse algumas rotinas de Colombo que, por sua vez, já estava dormindo no tapete da sala. Deixei-os e segui para casa.

Era pouco depois do meio dia quando dobrei a rua das castanheiras, no alto norte da cidade. Mercê me esperava na porta, feliz por meu retorno. Os anos tinham lhe sido muito generosos e ela continuava tão bela como na primeira vez que a vi. Veio e me abraçou, passando seu braço em volta de meu corpo e me conduzindo para o interior de nossa casa. Lúcio, meu filho mais velho, havia chego de uma viagem pela América latina e estava almoçando. Beijei-lhe a testa e fui lavar o rosto e as mãos para também almoçar.
- Que saudade de sua comida, Mercê! – fiz lhe um carinho no rosto.
- Como está Joaquim?
- nada bem, mas falemos disso depois – respondi.
- Lúcio, me conte de sua viagem.

Lúcio era um jovem de dezenove anos que na mistura perfeita das raças desabrochava uma beleza única. Havia retornado de uma viagem de dois meses por vários recantos da nossa querida América Latina. Após escutar cada detalhe de sua grande aventura, prometi que na próxima eu iria com ele, afinal, ainda tinha esse espírito em mim, além de uma grande mochila. Era muito bom estar em casa e passei uma tarde agradável com minha família. As histórias e percalços da viagem de Lúcio me fizeram esquecer Joaquim por um tempo. No final daquela tarde, Mercedes comentou que aquele céu alaranjado que se espalhava por todo céu e aquele calor todo lhe trazia a sensação de estar em Maracaíbo.
Sentados nas bancadas da cozinha, enquanto Mercê preparava um prato especial para a janta em família, retomamos a conversa adiada.
- Joaquim não está nada bem e creio que nossa viagem para Paris não rendeu muitos frutos.
-Pobre Joaquim. Já sofreu tanto e parece não conseguir desfazer a névoa escura que lhe ofusca a vida.
- Enquanto ele passeava com Colombo eu tentei contatar algumas pessoas que pudessem nos ajudar, mas nada deu certo. – enquanto íamos conversando eu comecei a cortar os tomates.
- Termine logo esses tomates – disse Mercedes dando risada, pois sabia que eu era muito lento.
- Sim, Mercê! Está quase pronto.
- Joaquim parece viver por viver. Acompanha as pessoas na rua, como tentando desvendar suas vidas, mas carece de vida própria. Colombo é a única coisa que o mantém vivo, mas temo pelo pior, pois Colombo está ficando velho e logo partirá.
- O que poderíamos fazer para ajudá-lo, quando ele sequer aceita ser ajudado?
- Não sei, mas ele precisa achar um sentido na vida.
- O que você pensa em fazer agora?
- Estou pensando em deixá-lo uns dias sozinho, até ter alguma ideia.
- Talvez seja melhor, afinal, é ele quem precisa construir as pontes.
- Sim, eu sei disso, mas me sinto no dever de salvá-lo dessa prisão.
- Termine os tomates, Guilhermo Seamann.
- Sim senhora! – rimos enquanto terminávamos de preparar a janta.

Todos sentados a mesa, Mercê em um vestido branco lindo que contrastava sua pele morena, Lúcio e Alfredo, meu filho do meio e Valentina, a mais nova. Alfredo, com quinze anos, ainda não sabia que ficaria de castigo por ter chego tarde demais do futebol com seus colegas e Valentina era minha pedra preciosa, uma princesa de doze anos. Sentado diante dessas pessoas especiais, não pude conter uma lágrima que queria transbordar de tanta felicidade.

Foi uma noite maravilhosa e meus filhos estavam tão afetuosos comigo que não pude deixar Alfredo de castigo. Ficamos acordados até tarde da noite, todos rindo e contando diversas histórias. Quando todos já estavam dormindo, Mercedes deitou-se ao meu lado e me beijou tão docemente que fizemos amor entre suspiros e o silêncio da madrugada. Ela adormeceu e eu não pude evitar, precisava agradecer a Deus por ter uma vida maravilhosa.

No outro dia liguei cedo para Joaquim. Prometi voltar na outra semana, pois precisava resolver algumas coisas. Ele entendeu, embora sua voz tenha me preocupado. Algo não estava certo no quadro geral das coisas. Voltei a minha rotina, trabalhando nas manhãs em meu escritório e dedicando minhas tardes aos menores. Valentina e Alfredo passaram a se interessar por história antiga e passavam muitas tardes comigo.

Liguei várias vezes para Joaquim que não atendeu nenhuma ligação. No começo achei que poderia estar no mercado, no banho, no jardim, porém com o tempo a preocupação aumentou e temi que tivesse cometido alguma besteira. Decidi que deveria voltar e avisei Mercedes que entendeu perfeitamente, mas decidiu que iria comigo.
- As crianças ficarão bem, Guilhermo.
- Está bem, mas vamos logo, pois estou com uma angústia muito grande.

Eram dez horas em ponto quando cruzamos o portão e ouvi Colombo latir. Fiquei um pouco mais tranquilo, mas os jornais dos últimos dias estavam na porta. Colombo veio ao meu encontro e então me levou até o quarto de Joaquim. Que terrível imagem, meu coração disparou instantaneamente.
- Mercê! Meu Deus! Não suba aqui.
- O que houve, Guilhermo!
- Não suba! apenas isso. Melhor você não ver isso.

O quarto estava devastado, como se um tornado tivesse entrado no ambiente. Roupas e garrafas de Jack Daniels jogadas por todos os lados. Achei melhor abrir as cortinas para ver o lugar e então, sobre a mesa, um papel me chamou a atenção.
Com as mãos trêmulas comecei a ler e o nervosismo só aumentava.

Caro Guilhermo, meu grande irmão!
Minhas forças para viver já não são suficientes para me manter em pé. Lamento muitas coisas nessa vida frustrada que levo, sem família, sem ninguém. Perdoe-me pela fraqueza em escrever isso, mas não tenho coragem de ligar e atrapalhar você. Lamento ter me afastado de você ao longo desses anos, principalmente por tantas vezes precisar de você e não ter ligado. Cuide de Colombo, ele está velho e rabugento, acho que puxou a mim. Ele gosta de Whiskey, assim como nós, mas não o deixe beber demais, senão ele pode falar alguma besteira. Hábitos nossos, apenas nossos.
Ele não gosta de comida feita em casa, por isso, embaixo do abajur enfeitado ao lado da cama tem dinheiro para as providências necessárias para sua alimentação nos próximos dois meses. Colombo precisa caminhar todas as manhãs, e tem um gosto específico por Plátanos. Assim, peço que localize um parque que os possua, para que ele não sinta as diferenças e não queira mais sair.
Entre em contato com essas pessoas abaixo e repasse os recados:
Cristine, minha secretária – Feche o escritório, ponha uma faixa de luto na frente. Você está de férias até segunda ordem.
Jeferson, do bar da esquina – Separe duas doses de Jack. Sem gelo, você sabe. Uma para mim, outra para a estrada.
Roberto, meu companheiro de bar – que ele beba algumas por mim.
Guilhermo – você mesmo, meu camarada. Nos vemos em breve, nessa vida ou em outra. Até lá, fique com o abajur, afinal, não quero um abajur enfeitado para onde vou.
Sophie  Eu te amei, mas a vida é feita disso, uma grande caixa de sonhos, viagens e chás que nunca vingaram’”

Quando terminei de ler em meio a tantas lágrimas e a indubitável certeza da morte de Joaquim, Mercedes estava ao meu lado.
- Meu Deus! O que esse homem foi fazer?
- é uma carta de despedida, Mercê!
- O que vamos fazer agora, meu Deus!
Totalmente desconcertado pela situação só pude lhe disse:
- Apenas ligue para a polícia.

Colombo sem muito entender, rondava a cama. Ficamos ali sentados por um tempo, apenas em silêncio, observando tudo e tentando entender o que havia acontecido. Meu pobre irmãozinho tinha aprontado mais uma das dele. Velho e tolo Joaquim.
 

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Há um filme para cada tempo... A Viagem para Darjeeling

Por Alexandre Nicoletti Hedlund

Já ouviu aquela expressão: "é o filho que escolhe os pais"? 
Ultimamente cheguei a conclusão de que não são apenas os filhos que escolhem os pais, mas que os filmes também escolhem seus futuros telespectadores, e mais, escolhem o tempo certo para serem assistidos, ou, como prefiro dizer, apreciados.
 
Foi assim com essa preciosidade "The darjeeling Limited" (A Viagem para Darjeeling), de Wes Anderson, lançado em 2007.
Achou que era algum filme 2011?? Nada. Como já falei, o filme escolhe a hora de ser apreciado.
E nesse caso, a viagem para Darjeeling nos brinda com as atuações marcantes de Owen Wilson, Adrien Brody e Jason Schwartzman. Detalhe para o fato de que o filme foi escrito por um trio de peso: Wes Anderson, Jason Schwartzman e Roman Coppola. 
O que quero dizer com isso? respondo com uma pergunta. Sabe a diferença entre um terno que você compra em uma loja de departamentos e outro que você manda fazer em um alfaiate?

Anderson e seus comparsas são alfaiates.

Anderson repete a boa receita de filmes anteriores (Os excêntricos Tenenbaums, A vida submarina com Steve Zissou) no elenco - Waris Ahluwalia, Anjelica Huston e Kumar Pallana, assim como as participações especialíssimas da linda Natalie Portman e do meu preferido - Bill Murray.  Foi boa supresa ver Murray no filme. Mesmo assim queria que ele tivesse maior participação.


E a história do filme? três irmãos que não se falavam há um ano, desde a morte do pai. Decidem fazer esse reencontro em uma viagem espiritual pela Índia. A viagem é cheia de atropelos e tentativas frustadas de fazer a coisa certa e resolver os relacionamentos da família. Mais detalhes estragariam a trama.
Chamo a atenção para a qualidade da fotografia do filme que é FANTÁSTICA.
Bom ingrediente dos pratos de Anderson é a trilha sonora. Assim como já havia feito nos filmes anteriores - apenas para destacar que na "vida submarina" Seu Jorge é um dos marinheiros e produz grande parte da trilha - em Darjeeling a qualidade impera. Abaixo, uma pequena pitada da qualidade com Kinks.
 

Em suma, filme 1000% aprovado na categoria FILME. 
Darjeeling limited exige apenas ser apreciado, não apenas assistido, ou seja, não é filme americano padrão, no qual tudo se opera facilmente.



                          


abraços,

Alexandre.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Réquiem para Joaquim - Capítulo VIII

VIII - Uma grande caixa de sonhos, viagens e chás que nunca vingaram
Por Alexandre Nicoletti Hedlund

O serviço de bordo anunciou a pátria amada, quando estávamos sobre o Rio de Janeiro, cidade com tanta bossa, com tanto samba e alegria.
Acordei Guilhermo que roncava ao meu lado.
- Preciso ir a um lugar antes de seguirmos viagem. – Disse-lhe enquanto pegávamos as bagagens de mão.
- Você está maluco, irmãozinho? Precisamos seguir “adelante”.
- Fique tranquilo, apenas me siga. Preciso fazer uma coisa antes de irmos embora do Rio e você fará comigo.
Certo de que não havia escolha, Guilhermo chamou um táxi que logo nos colocou pelas ruas. Estávamos na Barata Ribeiro quando o vi parado no cruzamento. Seu olhar lhe mentia a idade, escondia sua dor, seu grito contido, seu sofrimento de uma infância cerceada pela miséria urbana. Aquele menino, com roupas rasgadas, tentando vender um doce barato. Tal imagem me trouxe de volta a realidade do Brasil. Pedi ao taxista que parasse o carro, logo que entramos na Rua Santa Clara. Por algum motivo eu senti a necessidade preemente de parar e ajudá-lo, mas Guilhermo tentou me impedir. Quando consegui sair do carro o menino já havia sumido em meio aos carros e a multidão.

Dispensei o táxi e fomos caminhando até a praia. No caminho contei a Guilhermo sobre quem fora Barata Ribeiro e imaginamos o que ele faria se visse toda a pobreza que cercava o lugar e rimos. Apesar da brincadeira e de Copacabana que se anunciava em seguida, eu não conseguia tirar da mente a imagem daquele menino tão sujo, com um olhar tão tristonho, com os dedos já batidos de tanto trabalhar, maltratado e enganado pelo tempo. Lembrei de outra cena que vi do avião, aquele emaranhado dantesco de casebres, de pequenas construções amontoadas gritando o desespero cotidiano de quem sofre de fome e de sede de pão e de beleza.

Guilhermo em sua sabedoria bateu em meu ombro e disse sorrindo:
- Eu lhe compreendo Joaquim, mas agora precisamos atravessar a Atlântica.
Chegamos à areia e então pedi que sentássemos um pouco. Fiquei em silêncio por algum tempo, embora não possa precisar quanto tempo foi. Guilhermo disse que fiquei o tempo que era necessário para chorar em silêncio, embora eu sinceramente não me recorde de ter chorado.

O dia foi se despedindo lá no horizonte e precisávamos voltar ao aeroporto. Era madrugada quando chegamos e logo cedo quando Guilhermo partiu, prometendo que voltaria em alguns dias. Colombo estava ambientado ao lar, ainda que estivesse levemente dopado pela viagem. Olhei as poucas cartas de cobrança e de anúncios, abri as janelas para entrar um pouco de ar, mas o calor da cidade era insuportável. Assim passei o dia inteiro, reclamando do calor, que consumia meu tempo e meus pensamentos, evaporando-os a cada respirar. Liguei a televisão e o noticário destacava a morte de um menino de rua do Rio de Janeiro. Parei em pé em frente a televisão e vi espantado que Henrique da Silva havia sido morto em um confronto entre a polícia e os traficantes. Sua mãe chorava sua morte, a comunidade reclamava providências, as elites pediam paz. Uma trágica sinfonia de lágrimas, velas, cartazes, e no final do programa já se falava das belezas da praia e das fofocas dos artistas, ou seja, todos foram para suas casas com a certeza de terem feito o necessário, ainda que fosse apenas uma dose de autoengano.

O menino havia morrido. O menino que não consegui achar entre os carros e a multidão. E se eu tivesse o alcançado? Ele poderia estar vivo. E se? Tais dúvidas chicotearam minha mente criando um soturno abismo sobre meu ser.

À noite, o calor insuportável não me deixou dormir. A pouca luminosidade da rua logo transformou o teto em um palco onde fantasmas e sombras dançavam e cantavam, eu ouvia as flautas, o fogo e a festa dos sátiros, de repente um grito desesperado de quem não quer abraçar o barqueiro. Um pouco adiante o barqueiro se aproximou e me cobrou a moeda. O menino chorando estava sentado no barco. Tentei falar com ele, mas Caronte me impediu, barrando-me com suas mãos frias em meu peito. Eu o respeitei e tirei do bolso duas moedas que sequer imaginei que estavam ali. Entreguei-as em suas mãos, ele sorriu e então o menino parou de chorar. Vi eles se afastarem e sumirem em meio à neblina.

Acordei. Eu estava delirando, totalmente ensopado de suor e assustado na busca pelo significado daquele sonho. Levantei, lavei meu rosto e fui tomar uma dose de whiskey. Abri a porta da sacada e sentei numa poltrona confortável. Uma leve brisa pouco esforço fazia para apaziguar o calor do dia. Fumei um cigarro e outra dose se fez necessária. Outro cigarro e uma nova dose, e assim fomos, eu e o velho whiskey, até as cinco horas da manhã, quando, vencido pela bebida, dormi sentado com os pés para fora da porta de vidro. Acordei as onze horas com o sol queimando meus pés. Tomei um banho, mas nada fazia efeito.

Foi o dia mais silencioso e triste dos últimos tempos. Guilhermo ligou dizendo que não poderia retornar naquela semana, mas prometeu regressar na seguinte. Algo estava estranho em tudo, como um quadro que faltasse na parede ou uma lembrança que se deixava esquecer sem ao menos sequer saber qual era. Parei próximo ao jardim e vi um belo copo de leite pérola negra que havia se aberto no período em que estivera fora. Por algum motivo fiquei fixado em sua beleza, absorto em devaneios e pensamentos desencontrados até começar a chorar – acho que pela falta de chuva – e chorei por dias e noites sem parar.

As garrafas de whiskey se esvaziavam uma após a outra e um clima de trevas se fez diante de meus olhos. Os lábios balbuciavam conversas que tive sozinho, ininteligíveis para qualquer outra pessoa. Estava fraco e mal tinha forças para alimentar Colombo que parecia tentar de todas as formas me chamar a atenção para a vida. Porém, nada parecia fazer qualquer sentido. No segundo dia o telefone passou a tocar de tempos em tempos e os carteiros passaram a largar cartas e cartas em minha porta, mas eu preferi apenas me omitir da vida. Arrastei meu corpo até lá e levei todas até a mesa, onde abri uma após a outra, passando os olhos em todas, mas sem ler os conteúdos, jogando tudo no lixo.

No terceiro dia eu senti um pouco de fome, mas ao tentar comer, fui direto ao banheiro onde vomitei. De volta a cozinha, peguei outra dose de whiskey e ela me fez bem. Olhei meu rosto no espelho da sala e me assustei, pois pouco me lembrava quem já tinha sido um dia. Tentei recordar no passado um momento em que eu tivesse sido feliz, mas uma névoa cobria meus pensamentos e não pude recomeçar. As mãos abaixadas sobre a pia, o rosto molhado, a água escorrendo e levando embora toda minha força. Olhei novamente no espelho e vi Mozart doente me encarando e pactuando comigo meu leito de morte. Lembrei de tantos planos e projetos que eu mesmo boicotei, de tantas viagens que eu quis fazer, tantos lugares para conhecer, mas que foram todos jogados na lixeira da existência pelo comodismo e pelas desculpas que eu me dei ao longo do tempo.
Colombo deitado do meu lado abanava o rabo.
- Sempre quis conhecer o Egito! A Grécia! Colombo, nós nunca fomos para o Tibet ou para o raio que o parta! – Ele apenas me fitou, demonstrando total solidariedade comigo.
- As pirâmides, Colombo, todas as pirâmides!
Comecei a chorar novamente, pelo simples fato de não conhecer o Egito. Parecia não haver esperança quando eu olhava meu rosto cansado, abatido, uma barba de tantos dias e as mesmas roupas da véspera. E permaneci assim pelos dias que se seguiram. Para evitar transtornos abri um grande saco de comida para Colombo e deixei tudo atirado no chão da cozinha. Para mim, providenciei três garrafas de whiskey que me acompanharam até o quarto. Foram mais três dias em total silêncio e solidão.

Deitado em minha cama eu naveguei pelos mares da tristeza profunda que se abateu sobre minha embarcação e relutante fui obrigado a enfrentar meus demônios que pareciam rir de mim a cada instante enquanto eu me revoltava na cama. Meus olhos pareciam cerrados para sempre e me sentia preso sem ter qualquer amarra. Meu braço apenas tinha força para ingerir uma nova dose e em meu torpor eu entrei nesse transe maligno que me afundou ainda mais em minha decepção.

Com o tempo me acostumei a ter os olhos fechados, pois a cada vez que eu os abria, a dor e a vergonha aumentavam como ondas revoltosas que batiam em mim, tentando me afundar. Nesse delírio em que a realidade parecia se esvair por entre as frestas da janela, eu fui jogado para o mar e nas profundezas tão negras de suas águas eu vi minha vida se consumir diante do meu medo de encarar os fantasmas do passado. Torturado por minha própria mente, não vendo qualquer sinal de sanidade que tivesse restado, procurei em minha gaveta alguns comprimidos. A tristeza havia tomado conta de todo o ambiente e só consegui lembrar de recitar um poema de Florbela Espanca, que Colombo assistiu com muita atenção:

– “Morte, minha senhora Dona Morte, Tão bom que deve ser teu abraço! Lânguido e doce como um doce laço E, como uma raiz, sereno e forte.”
   Comecei a rir.
- abraço da morte, meu caro. – falei para Colombo com a voz já fraquejando pelo excesso de álcool, enquanto enchia novamente o copo. Continuei.
- “Não há mal que não sare ou não conforte, Tua mão que nos guia passo a passo, Em ti, dentro de ti, no teu regaço, Não há triste destino nem má sorte”
- “Dona Morte dos dedos de veludo, Fecha-me os olhos que já viram tudo!”
O corpo enfraqueceu, o copo caiu no chão, os pensamentos flutuaram pela noite e eu cai na cama, repetindo o poema até desmaiar e os comprimidos cumprirem sua promessa.
- “Dona Morte dos dedos de veludo, Fecha-me os olhos que já viram tudo!”

Sobre a mesa uma carta escrita pela metade, endereçada a Guilhermo, escrita de próprio punho por Joaquim, na qual ele lamentava os erros, os enganos, o distanciamento. Dois parágrafos de recomendações sobre como cuidar de Colombo. Havia dinheiro na gaveta para tal providência. O terceiro e o quarto parágrafo se constituíam de nomes que deveriam ser contatados e ao lado de cada um havia uma mensagem que deveria ser lida. Na última linha o nome havia sido riscado, mas ainda era possível ler “Sophie”. Do lado estava escrito – “Eu te amei, mas a vida é feita disso, uma grande caixa de sonhos, viagens e chás que nunca vingaram”.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Valsa De Quem Não Tem Amor

A Valsa De Quem Não Tem Amor  
João Gilberto
Minhas noites são fatais
Meus dias tão iguais
Tão só sem ter ninguém
Minha imaginação destrói
Meu coração
De viver na ilusão
De um dia amar alguém.

Nessa imensa solidão
A minha confissão
Recorra tristemente.
Cantarei sozinho imerso em
minha dor
A valsa de quem não tem amor.

http://www.vagalume.com.br/joao-gilberto/a-valsa-de-quem-nao-tem-amor.html#ixzz1AJnq4Yoo


 

sábado, 1 de janeiro de 2011

2011 - tente o novo...

2011 - tente o novo...

eu tentei hoje, dia 01/01/2011, pintando essa tela ai....

é um começo de um novo hobby que espero desenvolver melhor...


abraços,
Alexandre.