domingo, 24 de outubro de 2010

Réquiem para Joaquim - Capítulo V

Segue abaixo o quinto capítulo desse pequeno conto. Minha proposta pessoal é escrever dez capítulos. Assim, agradeço aos leitores pelas cobranças pelos próximos capítulos.



Réquiem para Joaquim
Por Alexandre Nicoletti Hedlund


V – com todo o meu ser, quis voltar para as estrelas

Noite adentro, as horas avançavam como cães selvagens, mas isso não me causava espanto ou medo. Apenas não conseguia, simplesmente, fechar os olhos. Simplesmente. E, mais que simplesmente, os pensamentos rondavam a fumaça do cigarro que acendi. O último refúgio foi apoiar-me na janela e continuar a fumar. Apesar do calor da noite, a cidade estava silenciosa, e eu, Joaquim Rivera, apenas conseguia contemplar a imensidão do universo. Colombo ao meu lado, compartilhava tal vista. Em silêncio, dividíamos a fumaça do cigarro. Apenas dois corações partidos.

O quarto estava cheio de livros espalhados, montanhas e montanhas de papéis, que se acumularam com o passar do tempo. Mas essa disposição das coisas – magistral desorganização – fez parte de uma opção. Era cômodo ter tudo jogado sobre a cama para substituir a presença de quem não voltaria jamais. Com o tempo, foi uma opção não desfazer as malas e, depois, outra opção não fazer mais nada. A disposição das coisas não deixava dúvida sobre os erros ao longo da vida.

Colombo levantou-se, e saiu do quarto em sua velocidade habitual. Tenho que confessar-lhes, meus caros, que Colombo já tinha aproveitado várias primaveras e seu andar lhe atestava a maturidade canina. Respeitei seu silêncio ao sair.  Voltei a contemplar as estrelas.

Alguns quarteirões adiante, em um dos prédios que estragavam a beleza do horizonte, uma luz se acendeu. Pobre luz do corredor! – pensei comigo – querendo competir com as estrelas. Era uma pena, porém Colombo tinha perdido esse episódio também. Vislumbrei algumas pessoas subindo as escadas com certa dificuldade. Possivelmente, o elevador havia quebrado. Acompanhei aquela tarefa até que o timer da lâmpada deixou os pobres caminhantes na escuridão novamente. Imaginei um diálogo no escuro, cheio de raiva contra a escuridão que, inocente, continuou silenciosa, preferindo não se defender. Em uma tentativa de acendê-la novamente, é provável que a lâmpada tenha estragado, pois passou a piscar irritada.

Passei então a me questionar sobre coisas mais profundas de minha existência, dos amores perdidos, das flores partidas e de lembranças esquecidas ou apagadas pelo passar do tempo. A fumaça de um novo cigarro dançava tão bonita no contraste que fazia com o universo, que em seu esplendor me permitia ser seu observador. Por um instante, imaginei ser o único sujeito a contemplar tamanha beleza, contudo naquele velho prédio da luz que ainda estava irritada, uma pequena pontinha vermelha piscava de tempo em tempo. Quem seria o astucioso admirador que me ajudava a olhar o céu e suas estrelas?

Mais uma vez apreciando o céu, tentava compreender o porquê dos caminhos traçados ao longo da vida. E as estrelas brilhavam, sem nada a dizer. Hoje percebo que minhas mais antigas memórias estão ligadas ao céu estrelado, quando ainda era apenas um menino crescendo no interior, na pequena cidade, que cedo adormecia para logo despertar.

Certa noite, descobri, ainda menino, que era possível caminhar sem fazer barulho e desenhei um mapa que me levaria – ainda na escuridão da casa – até a janela da cozinha. Eu, então, deixei-me absorver por aquela pintura tão bela da lua que, em grande narrativa encantava todas as estrelas ao seu redor. Fitava atentamente cada estrela, imaginando se lá distante algum menino, curioso como eu, também, em passos silenciosos contemplava a minha estrela-lar.

Lembro que um dia, quando estava na casa de minha querida avó, ouvi admirado, sobre uma estrela especial: a estrela polar. Alguns a chamavam de ursa menor, e, em minha meninice, cheguei a imaginar um filhote de urso perdido no céu, mas sempre a brilhar. Feliz por minha admiração, ela então me confessou em segredo que os nossos antepassados, os piratas mais temidos dos sete mares, guiavam-se por essa estrela, pois ela sempre estava lá, sem nunca se mexer. E, garanto-lhes, meus caros, isso embalou muitos e muitos sonhos do menino Joaquim.

Naquele tempo, tudo era mais fácil, mas eu não sabia. Quisera que alguma estrela tivesse me alertado da graça em ser criança. Porém, as estrelas tinham essa beleza de se comunicar por seu brilho, por suas cores, mas nunca por palavras. E eu, só aguardava por um sinal, tentando imaginar-me pirata, em pleno oceano a navegar.

Mas, agora estava em meu quarto, tempos e tempos depois, absorto em reminiscências distantes, como estrelas. Por ironia da vida, o vento fez-se presente, rolando uma sacola, dessas que os mal-educados deixam na rua. Nessa dança mágica, meu olhar se perdeu e, somente se encontrou no letreiro de uma loja, em que piscadelas me aconselhavam: “tudo para um lar feliz”. Obrigado fui a sorrir, mas no fundo pensei comigo, como eu queria achar minha estrela polar, para que me auxiliasse a navegar por esses mares revoltos que precisava agora, aos 42 anos, enfrentar.

Talvez fosse a hora de dormir. Olhei novamente o firmamento, mas as nuvens, egoístas, como só elas poderiam ser, fizeram questão de encobrir o céu, não permitindo que eu pudesse tentar ouvir a história que a lua outra vez contava. E, nessa confusão de pensamentos e memórias, imaginei-me novamente menino, e, com todo o meu ser, quis voltar para as estrelas.

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