domingo, 17 de outubro de 2010

Réquiem para Joaquim - Capítulo IV

Segue abaixo o quarto capítulo desse pequeno conto que tenho escrito em horários de folga.

Réquiem para Joaquim
Por Alexandre Nicoletti Hedlund


IV - Engraçado, hoje eu só me transformei em lamúrias


Nada mais correto do que desligar a televisão, diante de um noticiário que apenas repetia as mesmices do violento cotidiano dos centros urbanos. Ainda sentado na grande cadeira arranjada no centro da sala, pude observar o pó disposto nos móveis. Naquele momento, vi-me impulsionado a passar o dedo na estante, trazendo nesse gesto uma quantia considerável de sujeira, na constatação eminente da necessidade de limpar o móvel.

Por um instante, imaginei Fante[1] em seus questionamentos, mas tive de rir sozinho da inocente piada, pois Colombo estava no quintal. Embora sua maturidade sempre me impressionasse, percebi-o brincando com uma pequena bola verde. Aproveitei sua temporária distração para olhar um projeto que estava aberto em cima da mesa, afinal, Colombo não trabalhava e alguém precisava sustentar nossos vícios.

Fui virando lentamente a garrafa, ouvindo o magnífico som do Whiskey[2] ultrapassar a linha invisível que dividia o copo. O primeiro gole desceu rasgando minha garganta. Agora eu estava pronto para trabalhar. Aproximei minha banqueta da mesa e bebi outro gole, tentando apenas relaxar um pouco. Afastei algumas folhas para colocar o copo na mesa, porém percebi um livro isolado, que parecia me chamar.

De pronto identifiquei o livro, circunstância e demais contextos que envolviam aquela literatura. Movi a capa lentamente, e li a dedicatória feita por Laura, em letras tão bem escritas:

àquele que me impressionou na arte da literatura, um mimo como mostra de gratidão”

Fui jogado à esteira louca da memória e me vi em um antigo café, do centro boêmio da cidade, ocasião em que um perfume feminino rasgou o cenário, antecipando os toques dos sapatos de bico fino que adentraram ao recinto, ultrapassando rapidamente todas as mesas vazias, comprometidos que estavam com um objetivo. A mulher que os conduzia se chamava Laura.

Não haveria formas de descrever por completo quem era Laura. Uma mulher obstinada, sabedora de suas potencialidades e fraquezas, amiga e companheira da vida. Porém, totalmente indefesa – apenas uma menina – quando me via. De certo modo, meu olhar cansado, mas sincero, trazia-lhe paz e uma certeza.

Por muitas vezes senti uma mistura de ódio e lástima em sua fala, totalmente aniquilados e reduzidos a cinzas diante de um entreolhar que nos lançávamos. Essa era Laura. Uma mulher que me ensinou a arte de odiar e amar intensamente, mesmo que com isso tivéssemos de lutar a sangue e fogo, por nossa paixão. (Antes que seja tarde, preciso confessar-lhes, meus caros, que Laura já lhes é conhecida, ainda que com outro nome. Sim, meus caros, trata-se de Anita, e passarei a narrar-lhes a história desta forma, assumindo, por meu turno, a alcunha de Boris e, Colombo, se necessário for, de Napoleão).

Anita aproximou-se da mesa de Boris, e, embora ele já tivesse percebido toda a aproximação, disfarçou, inutilmente, que terminava de beber seu café. Anita colocou a mão dentro da bolsa, retirando cuidadosamente um livro, estendendo o braço singelo sobre a mesa e depositando-o próximo à xícara de café. Ainda de ponta cabeça, Boris percebeu que se tratava de um livro do Gabo. Em letras garrafais o título se estendia, “100 anos de solidão”.

– Trouxe esse livro para você, como um pequeno presente. – disse Anita, tentando não demonstrar o carinho que tinha por Boris.
– Agradeço pela lembrança, mas lamento informar, pois não tenho nada para lhe presentear em troca. – Boris, desconfortado por não saber se aquela era uma ocasião comemorativa, apalpou os bolsos de seu casaco, na vã intenção de achar qualquer coisa.
– Talvez você tenha esquecido Boris, mas esse livro é seu. – insistiu Anita.
– Sim, sim... agora é... afinal, você está me presenteando. – sorriu um sorriso debochado.
Com um olhar de pura seriedade, Anita lhe advertiu:
– Boris, eu não consigo acreditar! Você me deu esse livro há um ano e não consegue lembrar.

Boris sorriu com o canto da boca. Terminou seu café e então olhou carinhosamente para Anita, admirando-a. Depois do fatídico primeiro encontro, Anita  revelou-se outra pessoa. Obstinada em ter o amor de Boris,  provou-lhe que não era apenas uma capa bonita, mas, acima de tudo, que tinha um bom enredo e uma boa trama. Em pouco tempo, começou a discutir os livros, os filmes e as peças que Boris mais gostava. Em calorosas discussões sobre ópera ou sobre as obras de Shakespeare, demonstrou uma personalidade forte. Porém, passado esse ano, agora aparecia na frente de Boris para devolver-lhe o livro.

- Leia esse livro, está bem? – Disse Anita, sorrindo para Boris.

Anita deixou o livro em cima da mesa, virou as costas e saiu.

O golpe atingiu profundamente Boris. Por um instante, teve que sentar na cadeira de madeira a qual dava para a porta principal, ainda procurando entender o que estava acontecendo, embora já tivesse compreendido tudo. Em sua arte de moldar Anita conforme bem lhe convinha, Boris não percebeu que ela se afastava. A obra-prima não pertenceria ao seu escultor. Não havia mais nada a fazer.
  
Ainda sentado, deixou seus óculos caírem no chão, enquanto os olhos se enchiam de lágrimas, as quais lutou para que não o abandonassem, passando rapidamente as mãos no rosto para que ninguém o percebesse chorando. Pensou consigo: “engraçado, hoje eu só me transformei em lamúrias”.


[1] Referência ao autor John Fante, que, entre outros, escreveu o livro Pergunte ao Pó.
[2] Joaquim sempre teve sua preferência por beber Jack Daniels, que em sua grafia se diferencia dos demais, ou seja, a alusão ao “Whiskey” diz respeito a ele.

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