sábado, 6 de novembro de 2010

Réquiem para Joaquim - Capítulo VI

Segue abaixo o sexto capítulo desse pequeno conto.


Réquiem para Joaquim
Por Alexandre Nicoletti Hedlund

VI – Saiba que eu o amei tanto quanto o tamanho dos mares


A chuva inundava meu mundo há uma semana. As ruas formaram pequenos lagos, depois lagoas, e, por fim, rios. Meus cigarros tinham terminado, mas eu não sentia vontade ou necessidade de abastecer minha pequena caixa de prata com tabaco e nicotina. A estação do cigarro talvez tivesse encerrado. Eu apenas precisava sair desse lugar. Olhei Colombo que estava deitado imóvel perto do sofá e lembrei-me de um pequeno bote que Clarice havia me presenteado, quando completei 38 anos. Imaginei Colombo como navegador de minha “Santa Maria” e passei a narrar-lhe a nossa promissora epopeia para fora dali, porém ele pouco caso fez de mim.

O tempo parecia escoar mais vagarosamente que a água pelos dutos da cidade. Ouvi o telefone tocar durante muito tempo, antes que eu conseguisse reunir forças para tirá-lo do gancho. Era Guilhermo Seamann. Meu velho amigo estava de volta à cidade para alguns negócios. O Velho Seamann era um de meus últimos amigos que haviam passado pelo crivo do tempo. Quando jovem atravessou as Américas em busca de respostas, mas, encontrou apenas doenças venéreas, problemas com a polícia e com o narcotráfico e uma mulher que mudou o rumo das coisas.

            Filho de um diplomata inglês e de uma socialite argentina, Guilhermo veio parar nessa terra esquecida por Deus no acaso mais incrível da história universal. Formado engenheiro pela Universidade Autônoma, a cabeça cheia de sonhos e algumas economias guardadas, resolveu cruzar a América latina construindo casas para os desafortunados.

Era uma manhã calma de outono, quando ele apareceu em frente a minha casa e me propôs em seguir sua inóspita viagem. Durante os oito meses seguintes, fomos companheiros em uma tortuosa e cheia de percalços jornada, que parecia não ter fim. Pelos cálculos de Guilhermo já havíamos ajudado a construir mais de duzentas casas. Eu nunca duvidei dele.

Mas as coisas estavam para mudar. Estávamos entrando em março, quando nossa condução parou em Maracaíbo. Dividíamos uma casinha de palafita em Santa Rosa, no norte da cidade. Éramos tratados como reis pelos locais e projetávamos grandes melhorias naquelas instalações sobre a água. Fazia um calor infernal naquela cidade que mudaria o rumo das coisas. Como se fosse a cena de um filme clássico em preto e branco, Guilhermo se viu encantado pela beleza de uma menina de longos cabelos negros e vestido branco que saía de uma mercearia. Caminhou em sua direção e um mês depois estava casado com ela: Senhora Mercedes Bolívar Seamann.

Desse momento em diante, Guilhermo não fazia nada além de amar aquela mulher, e cada um estava resoluto com suas propostas, ele em amar Mercedes, enquanto eu pensava em voltar ao Brasil. Foi por esses dias que o Coronel Lucio Bolívar Strada, um dos mais poderosos traficantes de Maracaíbo, homem temido por meio mundo, descobriu que sua “pequena flor do campo” havia casado com um estrangeiro. Guilhermo se viu em maus lençóis, mas assumiu compromissos com o Senhor Lúcio que eu, seu amigo e irmão, jamais conseguiria evitar que firmasse.

O próximo passo foi Guilhermo ter uma arma, seguranças e uma tatuagem que em castelhano dizia: “no me molestes”. Eu não o reconhecia e, assim, logo me afastei, indo morar com Alícia, uma cantora de um cabaret famoso da região: El Remedio.

Alícia era uma mulher madura e tinha 36 anos quando eu a conheci, mas apesar disso, existia tanta beleza e juventude em seu olhar que faziam dela nada mais do que uma menina. Antes de ser uma cantora charmosa, fora uma viúva triste que perdera seu amado em um acidente de carro. Ela trazia consigo uma cicatriz nas costas que jamais a deixaria esquecer o amor rompido pela fatalidade. Apesar de estar meio confusa, por um tempo, ela manteve sua essência e passou a cantar.

Eu a conheci numa dessas noites quentes que só se tem Maracaibo e ela me seduziu como se fosse uma sereia de Homero. Na época, eu tinha apenas vinte anos, e me deixei levar para seu quarto e para sua vida. Noite após noite, ela, gentilmente, tirava minha roupa, dobrava-a cuidadosamente e então me banhava. Depois me conduzia ao seu quarto e então, pela fresta da porta, eu a via se banhar. Depois, protegidos pela penumbra da noite, nós nos amávamos incansavelmente. Deitado em sua cama, eu notava um olhar de entrega, de um arrebatador apaixonamento, que não voltaria a existir tão cedo em minha vida.

E assim passaram-se os dias, as semanas e os meses. Durante o dia, eu trabalhava na construção de casas de um pueblo próximo, enquanto Alícia bordava incansáveis panos finos trazidos do estrangeiro. À noite, eu a acompanhava até “El remedio” para me entorpecer com sua voz e o vinho de Dom Castillo. Vivíamos felizes em nossa simplicidade. De tempos em tempos eu ouvia falar de Guilhermo, cada vez mais integrado ao faroeste violento de Maracaíbo.

Um dia li no jornal que ele estava preso e o senhor Bolívar Strada havia sido morto pela polícia em um terrível confronto com os narcotraficantes. Fui visitá-lo na cadeia. Guilhermo, após o susto inicial ao ver-me, chorou incansavelmente. Pedi que se acalmasse e então verifiquei junto às autoridades locais, como poderia tirá-lo de lá. Os próximos cinco meses foram de trabalhos dobrados, até conseguir o dinheiro necessário para sua fiança.

No dia em que as portas da cadeia municipal de Maracaíbo se abriram e Guilhermo sentiu novamente a brisa quente daquela cidade, ele me olhou com imensa gratidão e disse:
- Joaquim, meu irmãozinho! Eu jamais esquecerei o que você fez, e prometo que vamos embora daqui hoje mesmo. Mas antes, preciso achar Mercedes.
Apenas sorri e o abracei. Nada mais precisava ser dito.

Alícia estava reclamando há alguns dias de uma dor intensa em sua barriga, e havia vomitado sangue em todas as ocasiões. Diante dessa repentina sensibilidade, fiz questão de  aguardar o melhor momento para lhe contar as novidades sem deixar-lhe mais nervosa.
Naquela noite – última noite em Maracaíbo – Guilhermo e Mercedes dançaram tão formosamente, enquanto Alícia cantava e, eu sorvia uma garrafa de vinho. Quando a música acabou, todos aplaudiram de pé e Alícia veio sentar-se ao meu lado. Em seu ouvido confidenciei:
- é chegado o momento, minha flor.
- como assim? – ela perguntou espantada.
- é chegado o momento de irmos para o Brasil, para iniciarmos lá uma nova vida. Minha jornada em Maracaíbo terminou.
Com seus olhos ternos ela me fitou por um instante, passando a mão em meu rosto.
- Joaquim, meu doce Joaquim! Por que você levaria essa velha contigo?
- Porque eu a amo, Alícia! Simplesmente por isso!

Alícia tentou evitar, mas algumas lágrimas borraram seu rosto pintado e naquela noite entramos no primeiro ônibus em direção a Caracas. A estrada e o clima estavam muito pesados, de forma que Alícia começou a passar mal, tendo vomitado por diversas vezes. Ao chegar a Caracas, eu a levei até o hospital mais próximo e, apesar de sua fraqueza, ela ainda resistiu por mais dois dias. Nesse meio tempo, antes do médico anunciar, ela olhou em meus olhos com sua ternura natural e disse:
- Joaquim, cuide bem de Henrique e diga que sempre o amarei.
- do que está falando, meu amor? – exclamei assustado, pensando que ela estava delirando.
Ela pôs suas mãos sobre o ventre:
- estou esperando um filho teu Joaquim, e, apesar de eu não sobreviver, gostaria que ele se chamasse Henrique.

Emocionado, beijei suas mãos, seu ventre, seu rosto.
- pare de bobagem mulher, nós teremos esse filho juntos.
- eu gostaria tanto meu Joaquim, mas não terei forças. Saiba que eu o amei tanto quanto o tamanho dos mares.

Seus olhos se fecharam, suas mãos ficaram leves e o último sono se aproximou sorrateiramente. Junto com ela, adormecia também Henrique. Guilhermo me abraçou em silêncio e fomos cúmplices dessa dor que nunca me abandonou. Desolado, apenas tive forças para enterrá-los em Caracas e então rumei ao Brasil com Guilhermo e Mercedes.

Arrebatado por essas memórias, não vi que a chuva havia passado e que um velho batia palmas em frente a minha casa. Usando engraçados suspensórios, Guilhermo gritava por mim e conversava com Colombo, que, impaciente, pulava de lado ao outro, anunciando nosso ilustre visitante. Nem tentei esconder as lágrimas do passado e do presente, abrindo a porta para aquele velho, que assim como eu, havia se achado e se perdido em Maracaíbo.

Guilhermo, sentindo que o momento exigia, abraçou-me fraternalmente. Por um instante, pensei ter ouvido a voz de Alícia, uma última vez, a me dizer:
- Saiba que eu o amei tanto quanto o tamanho dos mares.

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