segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Réquiem para Joaquim - Capítulo IX

Este é o 9 e penúltimo capítulo desse conto que me acompanhou ao longo do ano, fazendo de Joaquim um amigo, assim como Colombo. Espero que gostem. 



IX – Não quero um abajur enfeitado.
 Por Alexandre Nicoletti Hedlund

Maracaíbo. Uma brisa batia e acalmava meu corpo deitado ao lado de Mercedes. Dois corpos suados numa tarde qualquer perdida no tempo. Não demoraria muito a escurecer quando levantamos com o barulho da rua. Eram senhoras com cestos de roupa na cabeça que cantavam antigas músicas do sofrimento da escravidão e da liberdade. Nua, Mercedes contava da janela o que acontecia do lado de fora. Uma prévia do paraíso se desenhava em suas costas banhadas por tons alaranjados do pôr do sol.
- Acorde Guido! Acorde! Estamos chegando ao Rio. – Joaquim já de pé, alcançava nossas bagagens de mão.
Levantei meio sonolento e saímos, embora eu não tenha lhe dado muita atenção, preocupado mais por não ter conseguido mudar as coisas para Joaquim. Sequer poderia imaginar que ele já preparava outra aventura.
- Preciso ir a um lugar antes de seguirmos viagem.
- Você está maluco, irmãozinho? Precisamos seguir “adelante”.
- Fique tranquilo, apenas me siga. Preciso fazer uma coisa antes de irmos embora do Rio e você fará comigo.

Nem imaginei contrariar Joaquim, pois ele estava mesmo decidido a ir a algum lugar. Tomei a iniciativa de pegarmos um táxi enquanto ele procurava um jornal do dia. No caminho eu tentava me localizar e cheguei a discutir com o taxista, pois achei que ele estivesse nos enganando. Joaquim apenas riu da situação, pedindo calma de minha parte, mas sua atenção se voltou para outra coisa que demorei um pouco a entender. Era um menino no trânsito. Não que eu fosse insensível, mas depois de ver tantos meninos pobres pedindo dinheiro nos cruzamentos da vida eu já não me deixava atingir por isso. Talvez isso acontecesse com a maioria das pessoas que passavam por ali naquele instante, pois ninguém parava para lhe comprar um doce ou lhe ajudar. “Confortável omissão” pensei comigo, pois se os outros não fazem nada, também nos sentimos confortáveis em nada fazer. Nesse instante Joaquim mandou o táxi parar e quis sair pelo meio do movimento de carros. Tentei impedi-lo, pois me pareceu uma maluquice sem sentido, mas ele conseguiu se desvencilhar e foi por entre os carros, sem encontrar o menino.

Desconsolado resolveu caminhar um pouco e concordei, pois a viagem de Paris havia me deixado com dores nos joelhos. Coisas da idade.
- Você sabe quem foi Barata Ribeiro, Guido?
- não sei não irmãozinho.
- pois eu vou te contar. – Joaquim estava alegre por poder me ensinar algo. Eu deixei que continuasse.

Passado isso, logo estávamos na praia. Joaquim logo foi absorvido por seus pensamentos e eu apenas o respeitei. Tive de ajudá-lo a acordar para atravessarmos a av. Atlântica. Quando chegamos à praia ele quis se sentar por uns instantes. Pensei em aproveitar aquele vento gostoso e a sombra para cochilar, mas algo me impediu. Hipnotizado pelo mar e pela beleza de um azul magnífico de tantas tonalidades condensadas em um mesmo céu vi Joaquim chorar. Na verdade foram algumas poucas lágrimas que relutaram em cair, mas por final, vencidas, seguiram por seu rosto. Aquilo me fez ter esperança de que as coisas haviam mudado em Paris. Deixei-o sentado e fui molhar meus pés naquela imensidão de mar. Lembrei de um poema de Galeano, sobre o pai que leva o filho para ver o mar pela primeira vez, mas Joaquim estava tão concentrado que não pareceu correto lhe atrapalhar.

O sol estava se pondo quando achei por bem que voltássemos para o aeroporto. Quando chegamos à casa de Joaquim, liguei para Mercedes para avisá-la de que já estávamos bem e que em alguns dias estaria em casa. Mercê pediu que eu retornasse pois Lúcio havia chego em casa. Isso poderia estar mudando o rumo das coisas, mas eu resolvi ir ver meu filho, pois a saudade era muito grande. Prometi a Joaquim que voltaria em breve sem dar muitas explicações de minha viagem.

Ele não gostou muito de minha viagem, mas compreendeu. Creio que Colombo também, pois veio sentar-se ao meu lado antes de eu partir. Por um motivo que não pude entender Joaquim me entregou uma cópia das chaves de sua casa e fez questão de que eu soubesse algumas rotinas de Colombo que, por sua vez, já estava dormindo no tapete da sala. Deixei-os e segui para casa.

Era pouco depois do meio dia quando dobrei a rua das castanheiras, no alto norte da cidade. Mercê me esperava na porta, feliz por meu retorno. Os anos tinham lhe sido muito generosos e ela continuava tão bela como na primeira vez que a vi. Veio e me abraçou, passando seu braço em volta de meu corpo e me conduzindo para o interior de nossa casa. Lúcio, meu filho mais velho, havia chego de uma viagem pela América latina e estava almoçando. Beijei-lhe a testa e fui lavar o rosto e as mãos para também almoçar.
- Que saudade de sua comida, Mercê! – fiz lhe um carinho no rosto.
- Como está Joaquim?
- nada bem, mas falemos disso depois – respondi.
- Lúcio, me conte de sua viagem.

Lúcio era um jovem de dezenove anos que na mistura perfeita das raças desabrochava uma beleza única. Havia retornado de uma viagem de dois meses por vários recantos da nossa querida América Latina. Após escutar cada detalhe de sua grande aventura, prometi que na próxima eu iria com ele, afinal, ainda tinha esse espírito em mim, além de uma grande mochila. Era muito bom estar em casa e passei uma tarde agradável com minha família. As histórias e percalços da viagem de Lúcio me fizeram esquecer Joaquim por um tempo. No final daquela tarde, Mercedes comentou que aquele céu alaranjado que se espalhava por todo céu e aquele calor todo lhe trazia a sensação de estar em Maracaíbo.
Sentados nas bancadas da cozinha, enquanto Mercê preparava um prato especial para a janta em família, retomamos a conversa adiada.
- Joaquim não está nada bem e creio que nossa viagem para Paris não rendeu muitos frutos.
-Pobre Joaquim. Já sofreu tanto e parece não conseguir desfazer a névoa escura que lhe ofusca a vida.
- Enquanto ele passeava com Colombo eu tentei contatar algumas pessoas que pudessem nos ajudar, mas nada deu certo. – enquanto íamos conversando eu comecei a cortar os tomates.
- Termine logo esses tomates – disse Mercedes dando risada, pois sabia que eu era muito lento.
- Sim, Mercê! Está quase pronto.
- Joaquim parece viver por viver. Acompanha as pessoas na rua, como tentando desvendar suas vidas, mas carece de vida própria. Colombo é a única coisa que o mantém vivo, mas temo pelo pior, pois Colombo está ficando velho e logo partirá.
- O que poderíamos fazer para ajudá-lo, quando ele sequer aceita ser ajudado?
- Não sei, mas ele precisa achar um sentido na vida.
- O que você pensa em fazer agora?
- Estou pensando em deixá-lo uns dias sozinho, até ter alguma ideia.
- Talvez seja melhor, afinal, é ele quem precisa construir as pontes.
- Sim, eu sei disso, mas me sinto no dever de salvá-lo dessa prisão.
- Termine os tomates, Guilhermo Seamann.
- Sim senhora! – rimos enquanto terminávamos de preparar a janta.

Todos sentados a mesa, Mercê em um vestido branco lindo que contrastava sua pele morena, Lúcio e Alfredo, meu filho do meio e Valentina, a mais nova. Alfredo, com quinze anos, ainda não sabia que ficaria de castigo por ter chego tarde demais do futebol com seus colegas e Valentina era minha pedra preciosa, uma princesa de doze anos. Sentado diante dessas pessoas especiais, não pude conter uma lágrima que queria transbordar de tanta felicidade.

Foi uma noite maravilhosa e meus filhos estavam tão afetuosos comigo que não pude deixar Alfredo de castigo. Ficamos acordados até tarde da noite, todos rindo e contando diversas histórias. Quando todos já estavam dormindo, Mercedes deitou-se ao meu lado e me beijou tão docemente que fizemos amor entre suspiros e o silêncio da madrugada. Ela adormeceu e eu não pude evitar, precisava agradecer a Deus por ter uma vida maravilhosa.

No outro dia liguei cedo para Joaquim. Prometi voltar na outra semana, pois precisava resolver algumas coisas. Ele entendeu, embora sua voz tenha me preocupado. Algo não estava certo no quadro geral das coisas. Voltei a minha rotina, trabalhando nas manhãs em meu escritório e dedicando minhas tardes aos menores. Valentina e Alfredo passaram a se interessar por história antiga e passavam muitas tardes comigo.

Liguei várias vezes para Joaquim que não atendeu nenhuma ligação. No começo achei que poderia estar no mercado, no banho, no jardim, porém com o tempo a preocupação aumentou e temi que tivesse cometido alguma besteira. Decidi que deveria voltar e avisei Mercedes que entendeu perfeitamente, mas decidiu que iria comigo.
- As crianças ficarão bem, Guilhermo.
- Está bem, mas vamos logo, pois estou com uma angústia muito grande.

Eram dez horas em ponto quando cruzamos o portão e ouvi Colombo latir. Fiquei um pouco mais tranquilo, mas os jornais dos últimos dias estavam na porta. Colombo veio ao meu encontro e então me levou até o quarto de Joaquim. Que terrível imagem, meu coração disparou instantaneamente.
- Mercê! Meu Deus! Não suba aqui.
- O que houve, Guilhermo!
- Não suba! apenas isso. Melhor você não ver isso.

O quarto estava devastado, como se um tornado tivesse entrado no ambiente. Roupas e garrafas de Jack Daniels jogadas por todos os lados. Achei melhor abrir as cortinas para ver o lugar e então, sobre a mesa, um papel me chamou a atenção.
Com as mãos trêmulas comecei a ler e o nervosismo só aumentava.

Caro Guilhermo, meu grande irmão!
Minhas forças para viver já não são suficientes para me manter em pé. Lamento muitas coisas nessa vida frustrada que levo, sem família, sem ninguém. Perdoe-me pela fraqueza em escrever isso, mas não tenho coragem de ligar e atrapalhar você. Lamento ter me afastado de você ao longo desses anos, principalmente por tantas vezes precisar de você e não ter ligado. Cuide de Colombo, ele está velho e rabugento, acho que puxou a mim. Ele gosta de Whiskey, assim como nós, mas não o deixe beber demais, senão ele pode falar alguma besteira. Hábitos nossos, apenas nossos.
Ele não gosta de comida feita em casa, por isso, embaixo do abajur enfeitado ao lado da cama tem dinheiro para as providências necessárias para sua alimentação nos próximos dois meses. Colombo precisa caminhar todas as manhãs, e tem um gosto específico por Plátanos. Assim, peço que localize um parque que os possua, para que ele não sinta as diferenças e não queira mais sair.
Entre em contato com essas pessoas abaixo e repasse os recados:
Cristine, minha secretária – Feche o escritório, ponha uma faixa de luto na frente. Você está de férias até segunda ordem.
Jeferson, do bar da esquina – Separe duas doses de Jack. Sem gelo, você sabe. Uma para mim, outra para a estrada.
Roberto, meu companheiro de bar – que ele beba algumas por mim.
Guilhermo – você mesmo, meu camarada. Nos vemos em breve, nessa vida ou em outra. Até lá, fique com o abajur, afinal, não quero um abajur enfeitado para onde vou.
Sophie  Eu te amei, mas a vida é feita disso, uma grande caixa de sonhos, viagens e chás que nunca vingaram’”

Quando terminei de ler em meio a tantas lágrimas e a indubitável certeza da morte de Joaquim, Mercedes estava ao meu lado.
- Meu Deus! O que esse homem foi fazer?
- é uma carta de despedida, Mercê!
- O que vamos fazer agora, meu Deus!
Totalmente desconcertado pela situação só pude lhe disse:
- Apenas ligue para a polícia.

Colombo sem muito entender, rondava a cama. Ficamos ali sentados por um tempo, apenas em silêncio, observando tudo e tentando entender o que havia acontecido. Meu pobre irmãozinho tinha aprontado mais uma das dele. Velho e tolo Joaquim.
 

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