domingo, 9 de janeiro de 2011

Réquiem para Joaquim - Capítulo VIII

VIII - Uma grande caixa de sonhos, viagens e chás que nunca vingaram
Por Alexandre Nicoletti Hedlund

O serviço de bordo anunciou a pátria amada, quando estávamos sobre o Rio de Janeiro, cidade com tanta bossa, com tanto samba e alegria.
Acordei Guilhermo que roncava ao meu lado.
- Preciso ir a um lugar antes de seguirmos viagem. – Disse-lhe enquanto pegávamos as bagagens de mão.
- Você está maluco, irmãozinho? Precisamos seguir “adelante”.
- Fique tranquilo, apenas me siga. Preciso fazer uma coisa antes de irmos embora do Rio e você fará comigo.
Certo de que não havia escolha, Guilhermo chamou um táxi que logo nos colocou pelas ruas. Estávamos na Barata Ribeiro quando o vi parado no cruzamento. Seu olhar lhe mentia a idade, escondia sua dor, seu grito contido, seu sofrimento de uma infância cerceada pela miséria urbana. Aquele menino, com roupas rasgadas, tentando vender um doce barato. Tal imagem me trouxe de volta a realidade do Brasil. Pedi ao taxista que parasse o carro, logo que entramos na Rua Santa Clara. Por algum motivo eu senti a necessidade preemente de parar e ajudá-lo, mas Guilhermo tentou me impedir. Quando consegui sair do carro o menino já havia sumido em meio aos carros e a multidão.

Dispensei o táxi e fomos caminhando até a praia. No caminho contei a Guilhermo sobre quem fora Barata Ribeiro e imaginamos o que ele faria se visse toda a pobreza que cercava o lugar e rimos. Apesar da brincadeira e de Copacabana que se anunciava em seguida, eu não conseguia tirar da mente a imagem daquele menino tão sujo, com um olhar tão tristonho, com os dedos já batidos de tanto trabalhar, maltratado e enganado pelo tempo. Lembrei de outra cena que vi do avião, aquele emaranhado dantesco de casebres, de pequenas construções amontoadas gritando o desespero cotidiano de quem sofre de fome e de sede de pão e de beleza.

Guilhermo em sua sabedoria bateu em meu ombro e disse sorrindo:
- Eu lhe compreendo Joaquim, mas agora precisamos atravessar a Atlântica.
Chegamos à areia e então pedi que sentássemos um pouco. Fiquei em silêncio por algum tempo, embora não possa precisar quanto tempo foi. Guilhermo disse que fiquei o tempo que era necessário para chorar em silêncio, embora eu sinceramente não me recorde de ter chorado.

O dia foi se despedindo lá no horizonte e precisávamos voltar ao aeroporto. Era madrugada quando chegamos e logo cedo quando Guilhermo partiu, prometendo que voltaria em alguns dias. Colombo estava ambientado ao lar, ainda que estivesse levemente dopado pela viagem. Olhei as poucas cartas de cobrança e de anúncios, abri as janelas para entrar um pouco de ar, mas o calor da cidade era insuportável. Assim passei o dia inteiro, reclamando do calor, que consumia meu tempo e meus pensamentos, evaporando-os a cada respirar. Liguei a televisão e o noticário destacava a morte de um menino de rua do Rio de Janeiro. Parei em pé em frente a televisão e vi espantado que Henrique da Silva havia sido morto em um confronto entre a polícia e os traficantes. Sua mãe chorava sua morte, a comunidade reclamava providências, as elites pediam paz. Uma trágica sinfonia de lágrimas, velas, cartazes, e no final do programa já se falava das belezas da praia e das fofocas dos artistas, ou seja, todos foram para suas casas com a certeza de terem feito o necessário, ainda que fosse apenas uma dose de autoengano.

O menino havia morrido. O menino que não consegui achar entre os carros e a multidão. E se eu tivesse o alcançado? Ele poderia estar vivo. E se? Tais dúvidas chicotearam minha mente criando um soturno abismo sobre meu ser.

À noite, o calor insuportável não me deixou dormir. A pouca luminosidade da rua logo transformou o teto em um palco onde fantasmas e sombras dançavam e cantavam, eu ouvia as flautas, o fogo e a festa dos sátiros, de repente um grito desesperado de quem não quer abraçar o barqueiro. Um pouco adiante o barqueiro se aproximou e me cobrou a moeda. O menino chorando estava sentado no barco. Tentei falar com ele, mas Caronte me impediu, barrando-me com suas mãos frias em meu peito. Eu o respeitei e tirei do bolso duas moedas que sequer imaginei que estavam ali. Entreguei-as em suas mãos, ele sorriu e então o menino parou de chorar. Vi eles se afastarem e sumirem em meio à neblina.

Acordei. Eu estava delirando, totalmente ensopado de suor e assustado na busca pelo significado daquele sonho. Levantei, lavei meu rosto e fui tomar uma dose de whiskey. Abri a porta da sacada e sentei numa poltrona confortável. Uma leve brisa pouco esforço fazia para apaziguar o calor do dia. Fumei um cigarro e outra dose se fez necessária. Outro cigarro e uma nova dose, e assim fomos, eu e o velho whiskey, até as cinco horas da manhã, quando, vencido pela bebida, dormi sentado com os pés para fora da porta de vidro. Acordei as onze horas com o sol queimando meus pés. Tomei um banho, mas nada fazia efeito.

Foi o dia mais silencioso e triste dos últimos tempos. Guilhermo ligou dizendo que não poderia retornar naquela semana, mas prometeu regressar na seguinte. Algo estava estranho em tudo, como um quadro que faltasse na parede ou uma lembrança que se deixava esquecer sem ao menos sequer saber qual era. Parei próximo ao jardim e vi um belo copo de leite pérola negra que havia se aberto no período em que estivera fora. Por algum motivo fiquei fixado em sua beleza, absorto em devaneios e pensamentos desencontrados até começar a chorar – acho que pela falta de chuva – e chorei por dias e noites sem parar.

As garrafas de whiskey se esvaziavam uma após a outra e um clima de trevas se fez diante de meus olhos. Os lábios balbuciavam conversas que tive sozinho, ininteligíveis para qualquer outra pessoa. Estava fraco e mal tinha forças para alimentar Colombo que parecia tentar de todas as formas me chamar a atenção para a vida. Porém, nada parecia fazer qualquer sentido. No segundo dia o telefone passou a tocar de tempos em tempos e os carteiros passaram a largar cartas e cartas em minha porta, mas eu preferi apenas me omitir da vida. Arrastei meu corpo até lá e levei todas até a mesa, onde abri uma após a outra, passando os olhos em todas, mas sem ler os conteúdos, jogando tudo no lixo.

No terceiro dia eu senti um pouco de fome, mas ao tentar comer, fui direto ao banheiro onde vomitei. De volta a cozinha, peguei outra dose de whiskey e ela me fez bem. Olhei meu rosto no espelho da sala e me assustei, pois pouco me lembrava quem já tinha sido um dia. Tentei recordar no passado um momento em que eu tivesse sido feliz, mas uma névoa cobria meus pensamentos e não pude recomeçar. As mãos abaixadas sobre a pia, o rosto molhado, a água escorrendo e levando embora toda minha força. Olhei novamente no espelho e vi Mozart doente me encarando e pactuando comigo meu leito de morte. Lembrei de tantos planos e projetos que eu mesmo boicotei, de tantas viagens que eu quis fazer, tantos lugares para conhecer, mas que foram todos jogados na lixeira da existência pelo comodismo e pelas desculpas que eu me dei ao longo do tempo.
Colombo deitado do meu lado abanava o rabo.
- Sempre quis conhecer o Egito! A Grécia! Colombo, nós nunca fomos para o Tibet ou para o raio que o parta! – Ele apenas me fitou, demonstrando total solidariedade comigo.
- As pirâmides, Colombo, todas as pirâmides!
Comecei a chorar novamente, pelo simples fato de não conhecer o Egito. Parecia não haver esperança quando eu olhava meu rosto cansado, abatido, uma barba de tantos dias e as mesmas roupas da véspera. E permaneci assim pelos dias que se seguiram. Para evitar transtornos abri um grande saco de comida para Colombo e deixei tudo atirado no chão da cozinha. Para mim, providenciei três garrafas de whiskey que me acompanharam até o quarto. Foram mais três dias em total silêncio e solidão.

Deitado em minha cama eu naveguei pelos mares da tristeza profunda que se abateu sobre minha embarcação e relutante fui obrigado a enfrentar meus demônios que pareciam rir de mim a cada instante enquanto eu me revoltava na cama. Meus olhos pareciam cerrados para sempre e me sentia preso sem ter qualquer amarra. Meu braço apenas tinha força para ingerir uma nova dose e em meu torpor eu entrei nesse transe maligno que me afundou ainda mais em minha decepção.

Com o tempo me acostumei a ter os olhos fechados, pois a cada vez que eu os abria, a dor e a vergonha aumentavam como ondas revoltosas que batiam em mim, tentando me afundar. Nesse delírio em que a realidade parecia se esvair por entre as frestas da janela, eu fui jogado para o mar e nas profundezas tão negras de suas águas eu vi minha vida se consumir diante do meu medo de encarar os fantasmas do passado. Torturado por minha própria mente, não vendo qualquer sinal de sanidade que tivesse restado, procurei em minha gaveta alguns comprimidos. A tristeza havia tomado conta de todo o ambiente e só consegui lembrar de recitar um poema de Florbela Espanca, que Colombo assistiu com muita atenção:

– “Morte, minha senhora Dona Morte, Tão bom que deve ser teu abraço! Lânguido e doce como um doce laço E, como uma raiz, sereno e forte.”
   Comecei a rir.
- abraço da morte, meu caro. – falei para Colombo com a voz já fraquejando pelo excesso de álcool, enquanto enchia novamente o copo. Continuei.
- “Não há mal que não sare ou não conforte, Tua mão que nos guia passo a passo, Em ti, dentro de ti, no teu regaço, Não há triste destino nem má sorte”
- “Dona Morte dos dedos de veludo, Fecha-me os olhos que já viram tudo!”
O corpo enfraqueceu, o copo caiu no chão, os pensamentos flutuaram pela noite e eu cai na cama, repetindo o poema até desmaiar e os comprimidos cumprirem sua promessa.
- “Dona Morte dos dedos de veludo, Fecha-me os olhos que já viram tudo!”

Sobre a mesa uma carta escrita pela metade, endereçada a Guilhermo, escrita de próprio punho por Joaquim, na qual ele lamentava os erros, os enganos, o distanciamento. Dois parágrafos de recomendações sobre como cuidar de Colombo. Havia dinheiro na gaveta para tal providência. O terceiro e o quarto parágrafo se constituíam de nomes que deveriam ser contatados e ao lado de cada um havia uma mensagem que deveria ser lida. Na última linha o nome havia sido riscado, mas ainda era possível ler “Sophie”. Do lado estava escrito – “Eu te amei, mas a vida é feita disso, uma grande caixa de sonhos, viagens e chás que nunca vingaram”.

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