segunda-feira, 6 de junho de 2011

Réquiem para Joaquim - Capítulo X

Embora eu tivesse prometido que esse projeto teria apenas 10 capítulos, conviver com Joaquim, durante tantas páginas e histórias, fez-me seu amigo, de forma que, autorizado pela brevidade da vida que nos cerca, preferi escrever mais uma ou outra linha, transformando o "X" capítulo em dois ou três.
Por isso, segue abaixo, o X capítulo que, se apresenta como tal, jamais como o último. Alterei coisas nos primeiros capítulos, mas deixairei tais mudanças para a edição em livro (sonho que um dia realizarei).

Que apreciem Joaquim.


X – Joga-te e descobre

A escuridão cobria minha visão como nas noites vazias, frias e silenciosas do prenúncio do inverno. Em meio àquela escuridão houve luz e novamente a escuridão. Depois a visão ficou turva por uma névoa que surgia lentamente. Logo um vulto se aproximou envolto à neblina e, mesmo a distância, eu o reconheci.
- Caronte, meu velho amigo!
Ele apenas se limitou a sorrir o sorriso dos justos.
Agora eu me dava conta de onde estava e, principalmente, o que derradeiramente seria feito.
- Que belo barco escolhestes para a jornada!
Ele me encarou de alto a baixo, enquanto eu apalpava meus bolsos na vã tentativa de encontrar as moedas.
- Joaquim, seu tolo! Como pretendes viajar se não podes pagar o preço?
- Creio que me pegastes desprevenido.
- Tolo, tu te preparastes tanto para essa jornada e esquecestes do pagamento? Lamento mas te custará caro.
- Como assim?
- Não percebes que a travessia das vidas mal vividas, incrustadas de tristeza e amargura, custa muito além do que tu podes pagar.
- Caronte, meu nobre barqueiro! Não consigo compreender o que pretendes dizer.
- Acompanho tuas amarguras há tanto tempo Joaquim, ou tu pensas que os que habitarão o submundo não são acompanhados desde que começam a desprezar suas vidas?
- Quanto trabalho! – lamentei o labor de Caronte.
- Tu não imaginas quanto, mas gosto do que faço e o chefe não costuma aparecer por aqui. Sou praticamente um autônomo.
Rimos em meio à neblina que envolvia o barco.
- Por acaso tu não tens uns copos para um drink?
Assustado Caronte me olhou.
- O quê? Mesmo nessa hora tão tua tu pretendes beber?
- Se a hora é minha, vamos beber em grande estilo. Acompanha-me?
- Não sei se devo, estou dirigindo.

Rimos novamente e percebi que lhe faltava companhia nesse lugar esquecido pela luz. Embora não tivesse trazido as malditas moedas, não me esqueci de minha preciosa garrafa de Whiskey. Servi-lhe uma generosa dose e aproveitei para acender um cigarro.  O barulho do isqueiro ecoou pela escuridão. Sentamo-nos.
Confesso-lhes, meus caros, que foi uma conversa muito agradável.
- Não lembro de alguém que tenha aparecido com uma dessas especiarias. – Caronte sorvia a bebida com muito apreço.
- Pois então brindemos a vida e a morte!
- Não meu caro, brindemos a vida, pois eu sou a morte.
- Caronte – eu não conseguia parar de rir – tu és uma figura! Se os mortais soubessem o quanto tu és divertido, não lhe temeriam como a morte!
- Joaquim – ele não conseguia parar de rir também – tu és tão amigável quando queres que não consigo entender como deixou tua vida se esvair pelo ralo.
- Também não sei direito, meu caro, mas a vida não foi justa comigo por tanto tempo, deixando as pessoas que mais amei irem com o vento. Quando me vi no espelho, já não me reconhecia mais, já não tinha um sorriso a oferecer, não tinha mais sentido em buscar alguém, pois logo tu farias o teu serviço e eu ficaria sozinho novamente.
- Apenas faço meu trabalho! Espero que entendas!
- Compreensível, mas me questiono a razão de tantas vezes tu ter conduzido meus mais próximos. Por que trouxestes Alicia e meu pequeno filho?
- Eu não os trouxe, eles foram à luz.
- E Sophie?
- Sophie não morreu.
- Não morreu? Então o que houve com ela, pois eu a procurei por tanto tempo e nunca obtive nenhum sinal.
- Não pense mais nisso. Esqueça. Não há mais tempo para isso.
- Tentei esquecê-la, mas não consegui. Amei-a com tanta ternura que minha vida terminou quando eu a perdi. Dali em diante foram apenas tropeços e erros acumulados ao longo do trajeto.
- Joaquim! Creio que seja tarde para falarmos dela. Conte-me mais de Colombo. – Caronte parecia incomodado com a conversa.
- Espere um pouco. Antes me diga o que pretendes esconder mudando o rumo da conversa.
- Não posso falar sobre Sophie, ordens superiores.
- Como assim? O que está acontecendo aqui?
- O chefe me mata se eu contar!
- Caronte, mas tu és a morte. Logo, não podes morrer.
- Está bem! Tu tens sido uma boa companhia e sempre torci que tu vivesses plenamente.
- Conte-me então.
- Em algum momento daquele dia em que tu te encontrarias com ela, houve alguma coisa que mudou o rumo das coisas. Por escolha dela e dos caminhos que ela pretendia seguir, ela não foi ao teu encontro.
- Custa-me crer nisso que me contas.
- Pois é a verdade. Na noite em que vocês se encontrariam e que tu pretendias oficializar o pedido de casamento, ela, pressentindo tal acontecimento, preferiu silenciar o coração e deixou que tu fosses embora. Não duvido que ela até o amasse, mas foram escolhas dela. Adiante ela se arrependeu, ao que me consta, mas alguém próximo a ela, querendo o afastamento de vocês, tratou de informá-la que tu tinhas morrido no regresso, de forma tão verossímil que ela, relutante, acreditou.
- Meu Deus, o que é isso que tu me contas!
- A verdade. Ela sofreu durante algum tempo e nunca se recuperou totalmente, mas a vida seguiu.
- Mas onde ela está agora?
- Ela vive em Paris. Não se casou embora os pretendentes fossem tantos. Tem uma livraria perto do Louvre. Creio que tu passastes na frente com Colombo, mas não a observou.
Fora de mim, levantei e tentei ver uma saída.
- Preciso voltar a viver!
- Tenha calma Joaquim! Não há saídas aqui.
- Caronte, meu ilustre barqueiro, se há entrada, há saída. Eu preciso voltar a viver! Tu não entendes que a razão do meu sofrer se constituiu em não ter Sophie ao meu lado? Agora que sei a verdade, preciso regressar e ser feliz!
- Pobre Joaquim, como pretendes me convencer que tua felicidade dependia de outra pessoa? Tolo és tu ao pensar assim. A felicidade deve estar em ti, nos teus atos, na tua disposição para a vida.
- Caronte meu nobre! Ajuda-me! Ajuda-me!
- Temo não poder ajudá-lo.
- Mas eu preciso entender isso antes de fazer a travessia. Essa é a razão de tal conversa, que eu entenda os motivos!
- Está bem, mas há uma condição!
- Qual seja, estarei disposto.
- Quero que tu dês uma prova de amor verdadeiro pela vida ao retornar para tua vida. Recomeça a viver e seja teu maior amigo, seja aquele que te protege de ti mesmo nos momentos de fraqueza. Aquele que te fortalece e te dá inspiração para viver plenamente a vida pelo tempo que te restar.

Estava realmente surpreso com a proposta de Caronte, pois esperava algo totalmente diferente. Refleti e então lhe disse:
- Está bem, eu aceito a condição, mas peço que eu possa retornar de tempos em tempos para conversarmos.
- Tua disposição me deixa feliz, embora não seja comum que eu, o barqueiro, sinta-me feliz!
- Agradeço-te, oh Caronte, pela confiança.
- Pega em teu bolso esquerdo uma moeda de cobre, segura-a na mão, e pula na água.
- Como assim? Não tenho nada nos bolsos.
- Tu achastes que teríamos uma porta aqui? Quem garante que isso não é apenas um sonho, meu nobre Joaquim? Joga-te e descobre se tu não estás a dormir.
Aquilo ecoou em minha mente. Uma angústia tomou conta de mim.
- Não serão os teus lamentos como a névoa que encobre a noite, mas que se dissipa ao calor do sol? Será que não encobres tua vida com uma névoa, impedindo que o calor do sol dissipe-a e tu possas ver claramente as belezas da manhã?
- Joga-te e descobre!

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